Fundação do Convento de Nossa Senhora da Miseriórdia de Aveiro

«No ano do Redentor de 1423, que foi princípio do sétimo do Mestre Frei Gonçalo, primeiro Provincial de Portugal depois da separação, teve seu princípio o primeiro Convento de S. Domingos de Aveiro, pela maneira seguinte. Procedia a reformação dos Frades de Benfica com tanta pontualidade e concerto que se fazia amar por todo o Reino: e ajuntando-se uma graça particular, que a casa sobre outras tem do Céu, que é ser bem vista dos Reis, e Príncipes: obrigava todos os filhos d’el-Rei Dom João a lhe mostrarem uma notável afeição. Mas avantajava-se o Infante Dom Pedro, que era o segundo, com tanta inclinação a toda a Ordem, que, quando falava nos Religiosos d’ela, não se contentava com lhes chamar os seus Frades, que assaz honra fora, mas usava de termo, para Príncipe, mais humilde, e para nós de mais favor: dizendo, os nossos Frades. Confirmava com isto publicar grandes desejos, que a observância de Benfica se dilatasse, e crescesse em número de casas, como a via crescida em ponto; e vindo à sua noticia, que o Prior d’ela Frei Mendo de Santarém, que juntamente era Vigário da reformação pelo Padre Geral, pretendia povoar uma casa nova; porque tinha bastante número de sujeitos, como quem tira enxame de colmeia rica; declarou-lhe que queria que fosse em uma de suas terras. Tinha-o feito el-Rei seu pai, Duque de Coimbra, e Senhor de muitas vilas grandes, como Aveiro e Montemor-o-Velho e outras. Determinado de dar uma d’elas, não se resolvia em qual estaria melhor à Ordem, ou por divertido, em muitos cuidados, como Príncipe, ou por pouca agência dos Frades, cousa em que nenhuma idade nos tem melhorado. Valem muito com Deus tenção, e desejos firmes no bem, como erão tais os do Infante, assi os agasalhou, usando com ele um termo de misericórdia grande; e quase semelhante ao antigo, com que honrou a João Patrício Romano, pela vontade que tinha de empregar em seu serviço a fazenda, que possuía. Vivia na Vila de Aveiro um Afonso Domingues, velho de anos e de perseguição de doenças, que de longos tempos o tinham tolhido de pés e mãos, e como com pregos cravado em uma cama, homem conhecido na terra pelo mal, que padecia e por bom cristão e devoto de Nossa Senhora, antes da doença. Eis que um dia, era por Agosto do ano de 1422, amanhece são e salvo, e em pé, à porta do Infante, que acaso se achava então na Vila. Sobe as escadas tão solto e tão senhor de si, como quando era de 25 anos; pasmando todos os que o conheciam, como se viram fantasma. Pede audiência, levam-no ao Infante, corre toda a casa trás ele; posto em sua presença, foi contando que, na mesma noite, se ouvira chamar por seu nome, e abrindo os olhos, vira arder a pobre casa em resplandores muito avantajados ao sol do meio dia, e no meio d’eles se lhe representara uma Senhora cercada de tamanha glória e formosura, que não pudera duvidar ser a Virgem Mãe de Deus; e adorando-a por tal, entre perturbação e alegria, ela lhe mandara que tomasse uma enxada e a seguisse. Tal era a minha torvação, dizia o bom velho, que, sem me lembrar a prisão de membros, que tantos anos há não mandava nem erão meus, tive mãos para tomar a enxada, e pés para andar, sem saber o que fazia nem como o fazia. Fui-me trás a bendita Mãe de Piedade que encaminhou para a Porta do Sol, (é nome de uma das portas da Vila), e chegando a ela notei que se sentou na escada que sobe para o muro, e daqui me mandou, que fosse sinalando com a enxada (como fiz) um bom pedaço d’aquele descampado. Isto feito, disse-me que logo de sua parte vos avisasse, senhor Infante, que lavrásseis aqui um Mosteiro da Ordem de S. Domingos, e que fosse do seu nome d’ela. Até este ponto, como se tudo fora sonho, que na verdade assi mo parecia, não tinha eu reparado em nada, mas quando me vi feito embaixador, comecei a duvidar comigo, e dizia-lhe que ninguém me daria crédito, homenzinho e coitado, e em negócio tamanho. E a Senhora tornou: «Vai, não duvides; que bastará, pera seres crido, ver-te o Infante posto em pé, e são e valente, como estás, quando sabia, que estavas entrevado: então parece que acabei de entrar em mim, e cobrei luz para ver, e entender, que tinha cobrado milagrosa saúde, qual nunca esperei nem mereci. Foi o caso celebrado na Vila por todos os naturais com espiritual contentamento, como grande mercê do Céu, e por tal ficou nas memórias d’ela e do Cartório do Convento, para honra da terra e da Ordem, e é a cousa mais sabida de quantas se contam em Aveiro. O Infante ficou cheio de consolação e alegria, dando graças sem fim à Virgem, por ver que lhe era grato um serviço, que até àquela hora não tinha passado de traça e desejos: mas para não haver mais tardança na execução, chamou por uma parte o Vigário da reformação, pera assistir na obra da casa, que logo queria que começasse; e por outra, foi procurando licença de Roma pera ela, que impetrou por um Breve, que temos passado pelo Papa Martinho Quinto em dezanove de Fevereiro de 1423, e d’este tempo lhe contamos sua antiguidade. Quando veio aos vinte e três de Maio, tendo juntos grande cópia de materiais para a fábrica, lançou o Infante por suas mãos a primeira pedra; e fazendo logo levantar um altar no mesmo sítio, onde ora é o da Capela-mór, celebrou n’ele primeira missa o Padre Frei Mendo de Santarém Vigário dos Conventos reformados. Concedeu a Vila de boa vontade todo o sítio que por mandado da Virgem e mãos de Afonso Domingues se achou desenhado; e o Infante comprou outro chão vizinho para mais largueza, acudindo de suas rendas com todo o necessário; de sorte que brevemente houve gasalhado para alguns Frades, e começou na terra o edifício espiritual igualmente com o material; porque vierão Religiosos de Benfica, que ficaram logo pregando e confessando; e do que tocava à pedra e cal, se entregou a superintendência ao Padre Frei Nicolau de S. Domingos.

Tratou-se da invocação da Casa, e como havia de ser da Senhora, escolheu o Infante a d’aquele passo, em que mais dores e mais merecimento juntamente teve sua bendita Alma, que foi quando viu em seus braços ao pé da Cruz a fonte de Vida sem vida; e o Autor da luz coberto de sombras e escuridade mortal, passo em que o Infante tinha particular devoção: e ficou-se chamando, com linguagem e consideração pia daquele tempo, Nossa Senhora do Pranto, que nós agora dizemos melhor da Piedade: porque pranto supõe dor publicada com efeitos e mostras exteriores, que muitas vezes servem de alívio, e estas não consente aqui o bom discurso, conformando-se com as palavras do Santo Simeão, que na alma lhe puserão a espada, por maior e mais encarecido sentimento, que significamos com termo, que todo se refere ao espírito, qual é piedade. Mas nem este nome lhe durou muito tempo, para que o sucesso da fundação ficasse em mais partes semelhante ao de Roma, com quem o temos comparado. Se em Roma houve o milagre de cair neve, em tempo que o sol com mais fervor abrasava a terra, e sinalar a Senhora com ela o templo que queria; cá o houve também em dar calor a um corpo humano, que por frio e desemparado da natureza estava meio morto; e por seu meio e mão desenhar o circuito do Mosteiro, que mandava fazer. A Igreja de Roma teve vários nomes: já Basílica de Libério, porque se levantou em seu pontificado, já Santa Maria do Presépio, e em fim Santa Maria Maior, que é o que hoje dura. Assi aconteceu a este Mosteiro: foi do Pranto o primeiro nome, segundo da Piedade, terceiro da Misericórdia, e este terceiro lhe ficou como em sorte. Foi a ocasião que el-rei Dom Duarte, edificando poucos anos depois o Convento de Azeitão, quis que se chamasse da Piedade; e ficando na Província dous de um mesmo título, mandou-se alguns anos adiante, em um Capítulo Provincial, que para evitar confusão, se lançassem sortes em qual das Casas havia de ficar com a vocação da Piedade; e caiu a Sorte sobre Azeitão. E os Padres de Aveiro contentaram-se com o da Misericórdia. E porque a maior misericórdia, que a Senhora e o mundo receberam do Céu, foi a vinda do filho de Deus à terra, é a festa mais solene deste Mosteiro, sua santíssima Encarnação aos 25 de Março, solenizada sempre com notável concurso dos lugares vizinhos, em memória dos misteriosos princípios da Casa. Soube el-Rei Dom Duarte da devoção, folgou de lhe dar argumentos como conceder à Vila uma feira franca e geral, que começa aos vinte do mês, e dura oito dias.

E o Infante fundador, que sempre teve olho nos bens espirituais do Convento, depois de lhe dar todos os temporais que pode, alcançou do papa Eugénio. Quarto, no ano de 1439 uma indulgência plenária para todos os religiosos, que n’ele acabassem seus dias. O que era causa de nenhum velho sofrer ausência da casa, tanto que acabava Priorado ou Vigararia ou qualquer serviço da Ordem em outra parte. Assim estava sempre acompanhada de gente venerável por cãs e virtude. E na verdade, criaram aqueles claustros abalizados espíritos, que por eles jazem sepultados, e podemos dizer que foi terra fértil de santidade e virtude da celestial benção de quem a mandou edificar. De alguns iremos dizendo, de todos não pode ser; porque, como erão Santos, houve entre eles mais cuidado de trabalhar que de notar trabalhos; de exercitar virtudes, que de fazer livros d’elas.

A Igreja veio a sagrar-se muitos anos depois, no ano de 1464, por Dom Jorge de Almeida, Bispo de Coimbra, particular devoto do Convento, e grande pregoeiro das virtudes d’ele.»

Frei Luís de Sousa, História de S. Domingos, 2.ª Parte, Livro III, Capítulo III.

Convento de Aveiro

«Poder, prestígio, imagem no antigo convento de S. Domingos de Aveiro», por António José Leandro Costa Ferreira